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Charles Bukowski: Resistência e Amor

Drummond, "O Homem; As Viagens..." [com resenha do Editor]

Drummond, "O Homem; As Viagens..."


O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte – ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte (...).

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.


Andrade, Carlos Drummond de (1992): Carlos Drummond de Andrade: Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, Ed. Aguilar, pgs. 382-3.

Drummond enxergou antes de todos nós esse homem inquieto, cansado de si, condenado a fugir para a frente. O poema começa com ironia seca. O homem é “bicho da Terra tão pequeno”, mas armado de máquinas, foguetes e ambições cósmicas. Cada verbo é um degrau dessa escalada tecnológica que parece grandiosa, mas carrega no miolo um tédio ancestral. Ele pisa a Lua, experimenta a Lua, civiliza a Lua. A sequência rítmica, repetitiva, quase burocrática, desmonta a aura épica da conquista espacial. A Lua acaba igual à Terra, humanizada, portanto banalizada. Drummond arranca o heroísmo e revela a engrenagem íntima: o homem foge porque não sabe permanecer.

O movimento se repete em Marte. O poema vira uma espiral de expansão sem sentido, uma marcha imperial que tenta converter o universo inteiro em cópia ampliada daquilo que já o aborrece. É sátira, mas também lamento. A tecnologia cresce, mas o homem não muda. A cada planeta conquistado, volta o gosto insosso do mesmo. Ele humaniza tudo com zelo, mas não se humaniza. Drummond critica a obsessão de transformar o cosmos em espelho, como se a repetição do gesto técnico resolvesse a miséria afetiva que o poema denuncia no início: pouca festa, pouca alegria, muita fadiga existencial.

O desfecho é o golpe mais fino. Depois de dominar planetas, estrelas e sistemas, o homem descobre que a viagem mais arriscada e complexa é para dentro. A metáfora espacial vira introspecção. Drummond troca a cápsula pelo coração. O verdadeiro território inexplorado é o próprio sujeito, suas sombras, seus afetos, suas resistências. Ao invés da grandiloquência sideral, vem uma epifania simples: a alegria de conviver. O poema pousa nessa palavra com o peso de uma revelação. Drummond sugere que o homem, tão empenhado em colonizar o universo, nunca ousou colonizar a si mesmo. E é aí que a aventura ganha sentido. A perene alegria não está na expansão, mas no retorno. Não está no espaço exterior, mas no espaço íntimo que sempre adiamos explorar.

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