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Emil Cioran, em "Précis de décomposition" [Breviário de Decomposição, 1949]

Träumerei, de Schumann: uma lembrança que nunca foi nossa

Há peças que não pedem explicação, pedem silêncio. Träumerei é uma delas. Schumann a compôs dentro das Cenas Infantis, mas ela escapa do tema e vira outra coisa. Não é sobre infância real. É sobre a infância idealizada que todo adulto inventa para sobreviver. É memória sem conteúdo, só atmosfera. Uma melodia que parece caminhar na ponta dos pés para não acordar algo dentro de nós.

A nota longa inicial já entrega tudo. É um suspiro que se transforma em frase. Não há pressa, não há virtuosismo, não há espetáculo. Há intimidade. O piano fala como se estivesse pensando. E nós ouvimos como se estivéssemos lembrando.

A leitura de Horowitz elevou a peça ao seu destino inevitável. O velho pianista, cheio de cicatrizes e exílios, tocou Träumerei como quem devolve ao mundo um pedaço de delicadeza que quase desapareceu. Em Moscou, quando retornou depois de décadas afastado, a peça virou símbolo: um homem diante de sua própria história, tocando uma melodia que carrega saudade e reconciliação ao mesmo tempo. Não havia virtuosismo ali. Havia verdade.

Por isso ela emociona tanta gente. Porque trata do que perdemos e do que ainda guardamos. Porque anuncia, sem gritar, que a ternura sobrevive mesmo quando tudo parece bruto. E porque nos lembra que, de vez em quando, ainda somos capazes de sonhar acordados.

Träumerei é mínima, mas não é pequena. É simples, mas não é ingênua. Uma peça que abre uma porta interior e diz, com voz baixa: aqui dentro ainda mora algo que vale a pena.

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