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Emil Cioran, em "Précis de décomposition" [Breviário de Decomposição, 1949]

Os Cães Ladram e a Caravana Passa - Truman Capote transformou sua vida em literatura


Eu conheci Capote lendo a biografia de Porfírio Rubirosa, O Último Playboy. A propósito, uma biografia das melhores que já li. Por contar aos meus amigos sobre as aventuras de Rubirosa, suas mulheres, companheiros de farra e o que ele chamava de Parrandas, festas que duravam três dias, meus amigos que nunca haviam lido nada com afinco, leram essa história do original Ruby com dedicação. Capote surge triunfal desse contexto parisiense como figura excêntrica, debochada, escritor de sucesso, e resolvi conhecê-lo por sua escrita. Quem é esse Capote?

Li sobre festas requintadas, grandes salões brilhantes, bebidas em taças de cristal baccarat, damas e cavalheiros elegantes que circulavam como se cada gesto fosse um aviso ao mundo. Atrizes de cinema, playboys. As mencionadas Parrandas. Inclusive, o brasileiro Jorginho Guinle como parte desse Jet Set, sem maiores detalhes no livro. Foi nesse ambiente que comecei a enxergar a figura de Truman Capote não apenas como autor, mas como homem que sabia fabricar presença e destacar-se como indispensável. Um manancial de irreverências.

Fiquei intrigado com sua personalidade complexa ao ler seus textos do início da vida literária. Aquela escrita curta, cirúrgica. O domínio da frase que não poupava nem deixava barato. Essa marca fez dele um autêntico colunista, socialite, presença requisitada nas revistas e nos salões. Essas coleções de contos e crônicas foram publicadas e são disponíveis aqui no Brasil.

Nada passava despercebido a Capote. Eu gosto disso. Da ironia lapidada que diz tudo. Essa urgência me puxou adiante nas leituras. Mas segui sem escalas até A Sangue Frio. Um livro inesquecível. Que me prendeu pelo suspense e pela realidade e crueza de tudo.

A trajetória de Capote pareceu dividir-se em três fases claras. Primeiro o jovem prodígio, que escreve com precisão e encanta editores e leitores. Depois o autor em pleno domínio, aquele que experimenta formas, que mistura jornalismo e envolvimento pessoal, que alcança públicos distintos. Por fim, a fase do esplendor, dos prêmios e de seu mergulho no mundo social numa imersão profunda e gradativa: a voz literária se misturou à voz do personagem público, surge a crise de confiança perante seus leitores no jornalismo.

A Sangue Frio exige atenção porque é o ponto em que a escrita de Capote se transforma em método de investigação e em risco pessoal. Ele foi ao Kansas, morou na região, ouviu as pessoas, acompanhou o processo, escutou os assassinos. Não foi mero repórter de passagem. A imersão foi profunda. O que rendeu um material literário extraordinário, mas também colocou Capote em risco ético.

O leitor sente isso nas páginas. Há simpatia, há rejeição, há a busca por entender até onde a narrativa pode ir sem trair a verdade. Os riscos eram reais. Inclusive o risco que corre o jornalista ou escritor quando usa a intimidade dos outros como matéria-prima. A resposta foi um livro que mudou a forma como se escreve sobre crimes nos Estados Unidos.

A Sangue Frio é uma obra intrigante porque equilibra a importância do rigor diante de um fato social, o assassinato de uma família, e o cuidado estético, porque transforma toda a sua apuração em perguntas sobre a condição humana.

A presença de Capote na alta sociedade, na crônica e no Jet Set internacional não foi uma mera distração. Foi terreno de pesquisa também. Ele observava, era observado, e transformava esses encontros em verdadeiros acontecimentos.

A história de Truman Capote apareceu para mim como metáfora indisciplinada do modo de funcionamento da minha própria curiosidade geral. Eu sou curioso por modelo mental. Pesquiso, decifro, leio e escrevo. Rápido nas coisas complexas. Nas simples, eu esbarro. Aos 22 anos, fui diretor da Rádio Inconfidência [EMC]. Trabalhei e observei da mesa ao lado: a comunicação, a publicidade e o jornalismo. Fiz e conservo grandes amigos. É meu modo de conhecer, de estudar e experienciar o que me move e me inspira. É uma postura de risco intelectual. Todavia retorno a Truman Capote e seu método de apuração, que foi além dessa experiência pessoal, como limite, e se permitiu ser parte do fato e, ao mesmo tempo, testemunha exterior de tudo. Esse movimento arriscado, perigoso e fecundo, explicita a ambivalência e peculiaridade de sua escrita.

O mergulho no crime de Holcomb deixou marcas profundas na figura humana de Truman Capote. A convivência com os assassinos o afetou emocionalmente e o levou a um estado de exaustão moral. Ele viu de perto a violência, a fragilidade e a solidão. O filme apenas mostra o que os leitores já sabiam: aquele livro cobrou do autor um pedaço de si. Depois dele, Capote nunca mais foi o mesmo. A fama o isolou, as festas o entorpeceram, e o talento se transformou em necessidade pessoal.

Encerro por aqui com a percepção de quem lê e escreve todos os dias, nem que seja nas redes sociais ou por alguns poucos minutos em casa: Capote me ensinou que a grande escrita pede entrega e fatos. Fatos constatados e checados. Que a verdade escrita pode ferir e redimir ao mesmo tempo. Que a lucidez de enxergar o que está por trás das coisas do mundo, das realidades diárias, da política, da cultura e dos contextos sociais pode ser irresistível ou insuportável para alguns modelos mentais. No final de sua vida, Truman Capote reclamava da traição, da ingratidão, da fama e da solidão como seu preço. E citava com frequência o ditado turco que ele imortalizou na memória coletiva da literatura ocidental, que fez de bordão: os cães ladram e a caravana passa.

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