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A Hora Interior: Uma Visão de Heidegger
Um tempo depois percebi ao começar a escrever que, vez por outra, dia sim, dia não, terminamos por abordar algum gigante da civilização filosófica germânica. Talvez porque esses homens tenham conseguido nomear regiões internas onde poucos ousam entrar. Hoje volto a Heidegger, não por fidelidade escolar, mas porque ele enxergou com rigor aquilo que eu sempre senti sem conseguir dizer: a maioria das pessoas, e muitas vezes eu mesmo, vive segundo um ritmo herdado, difuso, quase automático. É como se a vida, quando não vigiada, me deslocasse para um lugar onde simplesmente funciono. Nada pergunto. Nada escolho. Apenas adiro. A isso ele chama de queda no impessoal, essa espécie de vertigem tranquila em que me torno estrangeiro de mim.
E o curioso é que esse estado tem sempre a mesma tática: manter a morte à distância. Empurrá-la para a margem, como se fosse um boato sobre outras biografias. Transformá-la num conceito abstrato, numa estatística, num sussurro que não me diz respeito. Mas Heidegger puxa o tapete dessa ilusão com a firmeza de quem sabe o que diz. Ele declara que a morte é minha possibilidade mais própria. Não no sentido mórbido, mas ontológico. Ela é a moldura silenciosa de todas as minhas ações. “A morte é possibilidade de impossibilidade”, escreve ele, e isso ecoa em mim como um sino que não permite autoengano. Se posso não mais poder, então tudo o que faço ganha densidade. O limite não me constrange. Me revela.
Quando encaro essa condição de forma direta, sem metáforas protetoras, o mundo reorganiza suas proporções. O verniz das urgências sociais se dissolve. A pressa alheia perde autoridade. E aquilo que eu julgava pequeno ganha um brilho austero, quase sagrado. Há um instante em que percebo que ninguém pode assumir minha existência em meu lugar. Ninguém pode escolher por mim, sofrer por mim, criar meu sentido por mim. O impessoal não pode viver a minha vida. E esse reconhecimento, embora severo, me devolve ao centro do meu ser. Como afirma Heidegger, “o ser se apropria de si mesmo na resolução”. Essa frase me acompanha como um lembrete de que autenticidade não é conforto, mas decisão.
Nessa clareza, a morte muda de posição. Deixa de ser uma ameaça suspensa e se torna uma bússola implacável. Ela me mostra o ridículo dos medos que cultivo e a gravidade das omissões que tolero. Mostra que algumas culpas são perda de tempo, enquanto alguns silêncios são imperdoáveis. Quando aceito minha finitude, não fico menor. Fico mais inteiro. Mais atento. Mais capaz de perceber o real que pulsa em cada momento. É curioso notar como o mundo parece mais vivo quando reconheço que não o terei para sempre. É como se o tempo ganhasse espessura e o instante deixasse de ser apenas um ponto na linha para virar território habitável.
A autenticidade, para mim, não é destino. É ofício. Requer um estado contínuo de lucidez, quase uma disciplina espiritual. Preciso me lembrar, de tempos em tempos, que o adiável é uma cilada, que a distração contínua é uma forma elegante de morrer antes da hora, que a espera infinita é irmã gêmea da inautenticidade. E, paradoxalmente, quanto mais aceito esse peso, mais leve a vida se torna. Sinto que o frescor retorna, como se o mundo recuperasse suas cores originais. Cada palavra ganha densidade. Cada gesto tem corpo. Cada encontro se torna irrepetível, porque sei que ele não pode acontecer infinitamente.
Percebo então que Heidegger, apesar de toda a fama de obscuridade, não fala em códigos indecifráveis. Ele fala da minha vida. Da vida de qualquer um que se percebe finito e, mesmo assim, não desiste de buscar sentido. Ele me lembra que existir não é algo dado. É tarefa. É risco. É criação. E é justamente isso que devolve grandeza ao cotidiano. A vida só se torna verdadeiramente minha quando aceito que ela termina. Só aí deixo de vagar e começo a caminhar. Só aí deixo de repetir e começo a escolher. Só aí descubro que viver é, no fundo, uma arte rigorosa, sustentada pelo frágil e luminoso reconhecimento de que o tempo é finito, e por isso mesmo precioso.
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