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Emil Cioran, em "Précis de décomposition" [Breviário de Decomposição, 1949]

"Abandonai toda esperança, vós que entrais." Dante Alighieri [Opinião do Editor]


Créditos: Web Free



A sociedade brasileira tornou o brilho um dever cívico. Vive-se em dupla frequência: o corpo aqui, suado no boleto; a alma ali, filtrada no Instagram, onde tudo reluz como se fosse possível viver assim. A lógica é simples e implacável. Não basta existir, é preciso performar. Não basta ter, é preciso parecer que se tem. É o teatro do consumo guiando escolhas financeiras de tendências e que aponta sempre para o mesmo lugar. Cada compra nasce de um impulso estético, mas morre a fatura do final do mês. 

Eduardo Giannetti perscruta esse fenômeno com a calma de quem observa uma pedra contra a luz. Ele sabe que o problema não está apenas nos objetos, mas nas ficções silenciosas que os sustentam. Status virou crença, quase religião. O indivíduo compra uma narrativa antes de comprar um produto. Compra a versão melhorada de si mesmo, acreditando que cada aquisição colará um remendo no seu sentimento de insuficiência. Giannetti desmonta essas ilusões: tira o excesso para mostrar o que realmente há por dentro, que quase sempre é medo, carência e a velha obsessão de ser visto.


Nesse ponto, a inscrição de Dante Alighieri [A Divina Comédia] na Porta do Inferno cai como luva. “Abandonai toda esperança, vós que entrais.” A frase paira sobre cada shopping center como uma profecia inadvertida. A porta giratória é o limiar. A vitrine promete redenção, mas lá dentro a alma é devorada por compulsão e crédito. Entra-se acreditando que se compra felicidade, sai-se carregando sacolas que pesam mais na consciência que nas mãos. 

O diagnóstico cultural é direto. Vivemos na economia do desejo, que opera como uma máquina de pressão contínua. A validação instantânea vira vício. O crédito fácil transforma o futuro em ilusão presente. A dívida se torna anestesia e punição ao mesmo tempo. Tudo isso alimenta a sensação coletiva de que não pertencer é fracassar. Não é apenas consumo; é competição estética, ritual de aceitação, ranking emocional permanente.


A ferida subjetiva pulsa por trás de cada compra. Não é frivolidade, é angústia refinada. O medo de não ser suficiente, de não brilhar o bastante, de não ocupar o espaço simbólico reservado aos que “vencem”. Giannetti reconhece que o consumo muitas vezes serve como prótese emocional. A pessoa compra para não desmoronar por dentro. A aquisição vira muleta psíquica, promessa de pertencimento instantâneo. O inferno aqui não é a dívida em si, mas a dependência de comprar para continuar cabendo no mundo.


Não se trata de acusar indivíduos, mas de entender a arquitetura cultural que nos molda. A engrenagem está montada para que o desejo nunca cesse, para que a sensação de escassez seja permanente. A saída não é moralismo. É autoconsciência. É aprender a separar o eu do avatar, o impulso da necessidade, a vaidade da identidade. É olhar para o próprio desejo como Giannetti olha para uma ideia: com atenção, distância, honestidade.


A frase de Dante pode ser lida ao contrário. O retorno à esperança começa quando se abandona a fantasia de que consumir é existir. A lucidez devolve calma. Um estilo de vida mais contido não empobrece, amplia. A vida ganha textura quando não se vive para a plateia. O consumo deixa de ser religião para voltar a ser ferramenta. A esperança nasce no instante em que percebemos que a verdadeira abundância não está no que acumulamos, mas na forma como nos libertamos do brilho que nos cega.

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