A Angústia como Chave da Consciência - Em Kierkegaard [do Editor]

A angústia, entendida a partir dessa tradição que Kierkegaard inaugura com tanta ousadia, é quase como o primeiro sopro da vida consciente. Não é um sentimento acidental nem uma sombra que aparece somente em momentos de crise.

FILOSOFIA

Saulo Carvalho

12/16/20252 min ler

A angústia, entendida a partir dessa tradição que Kierkegaard inaugura com tanta ousadia, é quase como o primeiro sopro da vida consciente. Não é um sentimento acidental nem uma sombra que aparece somente em momentos de crise. Ela está incrustada no próprio fato de existir. Antes de sabermos quem somos e o que podemos fazer, já percebemos que o mundo nos pressiona por todos os lados. A criança enxerga movimentos, relações, afeto, rejeição, limites e possibilidades. Enxerga tudo isso de modo claro o suficiente para sentir o impacto, mas não de modo claro o bastante para entender o que aquilo tudo significa. Há percepção, mas não há compreensão. Há sensibilidade, mas não há agência.

Essa tensão é a fonte da angústia. A inocência, que tantas vezes romantizamos, aparece aqui como um estado incômodo. A criança sabe que o mundo tem regras, mas ainda não sabe se pode intervir nelas. Sabe que há expectativas, mas não sabe como se posicionar. Sabe que existe algo como liberdade, mas não sabe como exercê-la sem se perder. Esse abismo entre perceber e agir é o espaço que a angústia ocupa. Ela é o sentimento produzido quando a consciência nota que há infinitas possibilidades, porém nenhuma firmeza para escolher. É o momento em que o mundo apresenta mil portas, mas a mão ainda não alcança a maçaneta.

Quando o indivíduo enfim atravessa esse limiar e começa a escolher, ocorre a grande virada existencial. A angústia recua, não porque tenha sido vencida, mas porque muda de forma. O vazio inicial se transforma em responsabilidade. A partir do instante em que compreendemos como o mundo funciona, o simples fato de agir modifica o cenário. Cada gesto passa a carregar consequências. Surge então a culpa, não como autopunição, mas como reconhecimento maduro de que nossas escolhas deixam marcas. A culpa é a consciência do peso da liberdade. Ela anuncia que não somos mais inocentes porque agora sabemos o que fazemos e sabemos que cada escolha exclui outras tantas.

Esse movimento é chamado de salto qualitativo, expressão que sintetiza o fato de que não há retorno possível à inocência. A pessoa que passou a compreender sua condição já não habita mais o mesmo mundo da criança. Superar a angústia primordial significa inaugurar a vida ética, que é sempre um diálogo entre desejo e responsabilidade. A partir daí, mesmo que a angústia retorne, ela retorna transformada. Não é mais a angústia de quem não sabe, mas de quem sabe e ainda assim percebe que a liberdade continua sendo maior do que qualquer fórmula pronta.

O que permanece atual nessa análise é a ideia de que a existência humana é estruturalmente marcada por essa oscilação entre abertura e peso. Vivemos diante de um campo imenso de possibilidades e, ao mesmo tempo, carregamos a tarefa de escolher. Embora o mundo mude, embora as circunstâncias se tornem mais complexas, o drama fundamental permanece. Antes de escolher, sentimos o tremor das infinitas possibilidades. Depois de escolher, sentimos a marca daquela decisão em nossa trajetória. A vida se constrói exatamente nesse intervalo que separa o impulso de existir da responsabilidade de viver. É esse movimento que dá profundidade ao ser humano e que faz da angústia não uma inimiga, mas um sinal precioso de que estamos vivos e conscientes.