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Charles Bukowski: Resistência e Amor

Parolagem da Vida - Carlos Drummond de Andrade

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Parolagem da Vida - Carlos Drummond de Andrade


Como a vida muda.

Como a vida é muda.

Como a vida é nuda.

Como a vida é nada.

Como a vida é tudo.

Tudo que se perde

mesmo sem ter ganho.

Como a vida é senha

de outra vida nova

que envelhece antes

de romper o novo.

Como a vida é outra

sempre outra, outra

não a que é vivida.

Como a vida é vida

ainda quando morte

esculpida em vida.

Como a vida é forte

em suas algemas.

Como dói a vida

quando tira a veste

de prata celeste.

Como a vida é isto

misturado àquilo.

Como a vida é bela

sendo uma pantera

de garra quebrada.

Como a vida é louca

estúpida, mouca

e no entanto chama

a torrar-se em chama.

Como a vida chora

de saber que é vida

e nunca nunca nunca

leva a sério o homem,

esse lobisomem.

Como a vida ri

a cada manhã

de seu próprio absurdo

e a cada momento

dá de novo a todos

uma prenda estranha.

Como a vida joga

de paz e de guerra

povoando a terra

de leis e fantasmas.

Como a vida toca

seu gasto realejo

fazendo da valsa

um puro Vivaldi.

Como a vida vale

mais que a própria vida

sempre renascida

em flor e formiga

em seixo rolado

peito desolado

coração amante.

E como se salva

a uma só palavra

escrita no sangue

desde o nascimento:

amor, vidamor!


---///---


A Vida em Exclamação: Drummond e o Vertiginoso Mistério do Viver

Saulo Carvalho, o Editor

Carlos Drummond de Andrade, no poema Parolagem da Vida, não constrói uma narrativa. Ele explode uma série de constatações. A cada verso, a vida é virada do avesso, como quem sacode uma roupa cheia de areia, restos, memórias e sangue. O poema não pergunta. Não filosofa. Não se explica. Ele afirma, mesmo quando parece hesitar. A estrutura é feita de repetições, como um mantra irregular, um rosário de perplexidades. A frase “como a vida…” se repete, quase obsessiva, como se o poeta estivesse tentando domar um animal selvagem que muda de cor a cada frase.

A primeira série de versos já estabelece o tom de antítese, de reverso, de multiplicidade. A vida muda. A vida é muda. A vida é nuda. A vida é nada. A vida é tudo. Em cinco linhas, Drummond toca os extremos da existência e nos empurra para dentro deles. A vida não tem voz, mas muda constantemente. É despojada, vazia, mas cheia de sentido. Tudo que se perde, mesmo sem ter ganho, escancara a lógica absurda que rege nossa história: vivemos derrotas que nunca foram vitórias. Carregamos lutos de coisas que nem chegaram a existir.

A vida é chamada de senha. Uma chave de acesso a outra vida, que já nasce velha. Não há rompimento. Não há corte entre o velho e o novo. Tudo se contamina. A novidade vem contaminada de ruína. O tempo, aqui, é cíclico e doente. A vida é sempre outra, sempre além da que é vivida. Há um eco de Pessoa, um sopro ortonímico: o que vivemos não é o que a vida é. E mesmo quando chega a morte, a vida ainda insiste. Persiste esculpida em gestos, em memória, em ausência. A morte, para Drummond, não é fim, mas forma de permanência.

A força da vida não está em seu esplendor, mas em suas algemas. Vive-se mesmo aprisionado. E dói. A dor é constante. Quando ela arranca a veste de prata celeste, a imagem é quase mística. Como se a vida, ao despir-se de sua ilusão, revelasse o vazio nu da existência. Misturado, contraditório. A vida é isto, mas também aquilo. Drummond reconhece o caos sem tentar ordená-lo. Não oferece explicações. Oferece espanto.

O poema, então, abraça o paradoxo. A vida é bela, mas é pantera ferida. Selvagem, sim, mas quebrada. E louca. E estúpida. E surda. E ainda assim nos chama. Nos seduz. Nos queima. Há nessa imagem uma quase pornografia existencial: somos atraídos por aquilo que nos dilacera. Amamos a vida como se ama um abismo. E ela chora. Chora por saber-se viva. Chora pela consciência de seu próprio ridículo. Sabe que não leva o homem a sério. E faz bem. O homem, este lobisomem, é o único ser capaz de trair a própria alma. Drummond o denuncia com uma ironia que morde.

Mas a vida ri. E a cada manhã ri de si mesma. Como se fosse uma deusa trapalhona. Uma divindade esquecida que erra, tropeça, e ainda assim nos oferece presentes. Prendas estranhas. Dádivas esquisitas. A vida joga. Alterna paz e guerra como quem troca de roupa. Povoando a terra de leis sem alma e fantasmas sem lei. É carnaval e tribunal. É jogo e sentença.

E então toca. Toca um realejo gasto. Repetitivo. Barulhento. Mas no meio da valsa brega e cansada, surge Vivaldi. Surge a arte. A beleza inesperada. A epifania no banal. Drummond encontra a música do sublime nos restos do cotidiano. A vida vale mais que ela mesma. Porque está sempre renascendo. Em flor. Em formiga. Em pedra rolada. Em peito que arde. Em coração que ama. Essa enumeração final é uma afirmação de fé na resiliência. A vida renasce no ínfimo, no insignificante. Há algo quase bíblico nisso: a redenção começa no pó.

E o poema fecha como um sacramento. Há uma palavra. Uma única. Escrita no sangue. Desde o nascimento. Amor. Vidamor. Palavra inventada. Palavra síntese. Palavra grito. Palavra criança. Palavra mãe. Palavra Deus. Drummond não define o amor. Ele o proclama. E o amor, aqui, não é sentimento. É instinto. É código genético. É razão da vida continuar, mesmo sendo absurda.

Parolagem da Vida não busca consolar. Busca iluminar o absurdo com poesia. E isso já é consolo. Drummond, com sua lucidez serena, nos mostra que a vida é uma contradição viva, uma ferida luminosa, uma pantera de garra quebrada que ainda consegue correr. E talvez seja justamente aí que está sua beleza. No fato de continuar, mesmo quando tudo parece dizer o contrário.

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