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O Muro dos Privilégios: o Impasse Brasileiro [Opinião do Editor]

Domínio Público

O problema central é transparente como vidro quebrado: a sociedade brasileira rejeita qualquer mudança que toque nos próprios privilégios. Há anos tentamos discutir isso no debate público e nada se move. O agronegócio, setor mais eficiente e competitivo das últimas décadas, não aceita pagar imposto. O Sistema S continua financiando Fiesp e CNI com dinheiro da folha dos trabalhadores. Boa parte das empresas insiste em crédito subsidiado do BNDES ou do Banco do Nordeste. A Zona Franca de Manaus permanece um território inviolável, onde qualquer tentativa de ajuste bate num muro político e emocional. Estados como Rio de Janeiro e Bahia não querem honrar as próprias dívidas. Categorias blindadas do setor público rejeitam ajustes que as incluam. No Judiciário, penduricalhos continuam crescendo como micélio subterrâneo. A lista é tão farta quanto cansativa.

O episódio recente do governo de São Paulo, ao tentar rever benefícios fiscais do ICMS, é um retrato do Brasil real. O anexo do projeto tinha cerca de mil páginas. Havia isenção para camarão, óleo de barco de pesca, cavalo puro-sangue que não fosse inglês, bulbo de cebola. Bastou propor reduzir 20% desses benefícios para eclodir uma revolta generalizada. É sempre o mesmo mantra: mexam no dos outros, não mexam no meu. O Estado apenas espelha uma sociedade que considera seus próprios benefícios legítimos e os alheios, abusivos.

Os números mostram que esse modelo não se sustenta mais. No lançamento do novo arcabouço fiscal, o governo projetava uma dívida bruta de 77% do PIB em 2026, mesmo no cenário pessimista. Agora a previsão é de 84%. Para 2025, projetaram superávit primário de 0,5%; teremos déficit de 0,5%. Os juros, que deveriam estar caindo, só sobem. Com taxa real acima de 7% e recursos parafiscais espalhados que não aparecem no resultado primário, o ajuste necessário ultrapassa 5% do PIB. Isso significa, em ordem de grandeza, cortar 70% dos benefícios previdenciários. Politicamente impossível. Portanto, a dívida seguirá crescendo por anos, até o limite de tolerância dos financiadores. E há sempre um limite, ainda que ninguém saiba exatamente onde está.

Chegará o momento em que interesses privados terão de ceder para produzir um benefício público maior: estabilidade macroeconômica. Mas não vemos maturidade social para isso. No Brasil, mudanças profundas quase sempre surgem empurradas por crises severas, como as de 2015 e 2016. Não precisava ser assim. No século XIX, Estados Unidos e Reino Unido enfrentavam problemas semelhantes aos do Brasil de hoje: corrupção, nepotismo, protecionismo, saneamento precário. Avançaram porque empreenderam reformas institucionais sérias, contínuas e de longo prazo: políticas antitruste, combate ao nepotismo, leis anticorrupção, modernização sanitária, expansão da escola pública, melhoria da segurança. Nada de teoria vazia, e sim política pública que alcança a vida comum do cidadão.

O Brasil também tem histórias de sucesso: o agronegócio, a computação, diversas áreas de pesquisa científica. Em todas elas há um padrão claro: investimento em pessoas, conhecimento de fronteira, abertura ao exterior, competição real, ambição global. Mesmo assim, continuamos copiando o que não funciona, como protecionismo industrial, e ignorando o que funciona com evidência empírica.

Crises ajudam, mas não resolvem por si mesmas. A de 2015 derrubou um governo e abriu espaço para reformas como o teto de gastos. Porém, assim que a economia deu os primeiros sinais de recuperação, o senso de urgência evaporou. Cada grupo voltou a defender seu quinhão. O teto de gastos foi furado e morreu. Para mudar de verdade, é necessária concertação nacional. Lideranças políticas, empresariais e sociais sentando à mesa, encarando os números e convencendo o país de que o caminho atual não fecha. Até agora, isso não aconteceu.


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