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Emil Cioran, em "Précis de décomposition" [Breviário de Decomposição, 1949]
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| Créditos: Domínio Público. |
Emil Cioran, em “Précis de décomposition”
[Breviário de Decomposição, 1949].
[É um dos textos mais potentes de sua filosofia do niilismo lúcido e da dessacralização do sentido]
Extrait de “Précis de décomposition”
“Ce n’est pas la douleur qui engendre les idées profondes, mais la douleur transfigurée, pensée, comprise, assumée. Or cette transfiguration suppose une distance à l’égard de la douleur. Quand elle vous broie, vous n’avez pas le loisir d’élaborer quoi que ce soit. Les grands créateurs n’ont pas été des martyrs, mais des convalescents: leur œuvre est la forme de leur guérison.”
“Le désespoir qui se contente de hurler est sans intérêt ; il doit se muer en chant pour justifier son existence. Le cri n’est qu’un signal, la poésie un accomplissement. Ceux qui s’attardent au signal sont inaptes à créer. Il faut aller au-delà de l’immédiat, de l’instantané, de l’instinctif. Le style commence là où finit l’agonie.”
Texto traduzido:
Breves Anotações [pelo Editor, Saulo Carvalho]:
“Não é a dor que gera ideias profundas, mas a dor transfigurada, pensada, compreendida, assumida. Ora, essa transfiguração supõe uma distância em relação à dor. Quando ela te esmaga, não há tempo para elaborar nada. Os grandes criadores não foram mártires, mas convalescentes: sua obra é a forma de sua cura.”
“O desespero que se contenta em gritar é sem interesse; ele precisa transformar-se em canto para justificar sua existência. O grito é apenas um sinal, a poesia é um cumprimento. Aqueles que se detêm no sinal são incapazes de criar. É preciso ir além do imediato, do instantâneo, do instintivo. O estilo começa onde termina a agonia.”
A dor, quando irrompe em sua intensidade bruta, reduz o ser humano a um reflexo imediato. Nada nela convida ao pensamento. O sofrimento no auge é um incêndio que toma por completo a casa interior e obriga o sujeito a correr, não a escrever. Nesse primeiro momento, não existe linguagem articulada, apenas ruído, apenas o grito que denuncia a urgência. Esse grito pode ser verdadeiro, pode ser legítimo, pode até ser necessário para sobreviver, mas não é ainda criação. É sinal. É alarme. É existência em sua forma mais vulnerável e elementar.
Quando o tempo passa, algo silencioso ocorre. A dor perde o seu calor febril e se torna memória. O que era chama vira brasa. Nesse intervalo, a mente recupera suas funções superiores e volta a observar. Surge um espaço entre o sujeito e o acontecido. Essa distância não é covardia emocional, mas condição indispensável para que a experiência possa ser representada. A linguagem, então, retorna ao corpo como se recuperasse os instrumentos de um ofício antigo. Já não se trata mais de gritar, mas de ordenar. Já não importa apenas sobreviver, mas entender.
Esse entendimento só é possível ao convalescente. Ele é o verdadeiro criador porque reúne paradoxalmente duas forças: a vivência intensa e a serenidade posterior. Carrega na pele a marca do que viveu, mas também possui a frieza necessária para escolher as palavras com cuidado. Enquanto o ferido recente confunde emoção com discurso, o convalescente transforma emoção em matéria trabalhável. Ele não sofre menos. Sofre de modo diferente. Sofre com método. Seu olhar recua um passo e, nesse recuo, ganha profundidade.
A transformação da dor em sentido exige mecanismos psicológicos precisos. Primeiro, o sujeito precisa atravessar a fase da urgência, aquela em que o corpo reage mais rápido do que pensa. Depois, a memória organiza o acontecimento, posicionando-o em sequência e contexto. Em seguida, a imaginação intervém, revestindo a experiência em metáforas e símbolos. Por fim, entra a vontade estética, que seleciona, poda, realça e sublinha. Nada disso seria possível sem o tempo. A dor imediata é avessa à forma. A dor rememorada pede forma como quem pede abrigo.
É por isso que a arte nunca é ferida aberta, mas cicatriz. A cicatriz é uma prova ambígua. Recorda o golpe, mas também a resistência. Marca o lugar da dor, mas celebra o fato de que ela não destruiu completamente. A cicatriz é a matéria prima do poema. Ela fala sem urgência, fala sem gritar, fala com a autoridade de quem passou pelo fogo e não se consumiu. A beleza estético filosófica não está no sofrer em si, mas na possibilidade de transfigurar o sofrer em significado. Não é a lágrima que comove, e sim a linguagem que nasce depois dela.
Essa visão não glorifica o sofrimento. Pelo contrário, reconhece que a dor é inevitável, mas a criação é escolha. Cioran lembra que viver é ferir se e ser ferido, mas pensar é recuperar essas feridas e interrogá-las. A cultura contemporânea frequentemente confunde exposição de angústia com profundidade, como se bastasse narrar o sofrimento para criar algo valioso. O pensamento cioraniano denuncia essa ilusão. A exposição imediata é catártica, porém não é necessariamente luminosa. A luz vem com a digestão interior, com o trabalho lento da consciência que transforma caos em estrutura.
Assim o criador autêntico não é o mártir que sangra diante do público, mas o artesão que se senta depois, cercado de silêncio, para transformar o próprio sangue em tinta. A tarefa é árdua. Requer paciência, discernimento e certa coragem para revisitar aquilo que um dia quase se tornou insuportável. Exige também confiança na velha disciplina da forma, essa herança ancestral que nos lembra que tudo o que vale permanecer precisa ser composto com atenção.
No fim, Cioran nos oferece uma lição ao mesmo tempo antiga e visionária. A dor inaugura a matéria, mas o tempo e a lucidez a convertem em obra. Não basta viver. É preciso sobreviver o suficiente para compreender. O poeta, o filósofo, o artista são sempre convalescentes que aprenderam a transformar a própria cicatriz em caminho. E talvez seja exatamente aí que repousa a grandeza silenciosa da criação: não na intensidade do que se sofreu, mas na dignidade com que se organiza o que restou.
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