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Emil Cioran, em "Précis de décomposition" [Breviário de Decomposição, 1949]

Dormir é Ensaiar a Morte [Autoral]

Inteligência Artificial

O sono sempre me pareceu o ensaio mais delicado da morte. Os gregos traduziram isso em sua mitologia: os gêmeos Hypnos e Thanatos, nascidos da escuridão Noite, representam os dois rostos do mesmo esquecimento. Um me visita e me devolve ao mundo; o outro virá apenas uma vez e não mais me devolverá. Ambos são faces da morte em tempos distintos, um como ensaio, o outro definitivo. Quando fecho os olhos e deixo a mente apagar, desligo-me e deixo o meu corpo no automático e por conta própria. Quem decidirá se acordarei ou não?

“Dormir é a forma mais inocente de suicídio”, escreveu o meu querido Emil Cioran, assim me refiro a todos os escritores, pensadores, poetas que admiro e revisito. E Cioran tinha razão. Dormir é a anulação temporária do eu, o colapso controlado do meu racional. Um abandono consentido de mim. 

Imagino: por algumas horas, deixo de ser. Nenhum nome me acompanha, nenhuma identidade me reconhece. É a morte sem tragédia, um desfecho sem drama, no meu ato de auto esquecimento puro, sereno, um estado em que me poupo do peso de existir e me liberto do caos da minha condição humana.

Há uma sabedoria nesse apagar cotidiano. Dormir é ceder ao impulso mais antigo da matéria: regressar ao nada. A consciência, essa torturadora essencial do homem, resiste enquanto pode, mas o corpo obedece à sua vocação natural. Nisto, está a razão do sono tornar-se o ritual diário de rendição.

É gesto mais que filosófico: a vigília é uma tortura, o pensamento uma prisão, e a lucidez, uma forma de febre. No sono, encontro o que mais desejo: o alívio de não pensar, o descanso de não ser. Nesse vazio, reencontro o que talvez sempre fui: o ser que idealiza entre o risco do bem e do mal e a isso darei o nome de sonho.

Emil Cioran entendeu isso melhor do que qualquer outro. Para ele, dormir era a forma "mais inocente de suicídio". Ao adormecer, renunciamos ao existir e retornamos à neutralidade primordial. "Não há pensamento, nem culpa, nem tempo. Apenas o repouso absoluto da consciência". Cioran via no sono diário um delírio metafísico consciente, um colapso voluntário e lúcido, como se o corpo soubesse que a vida é uma intermitência.

Penso, às vezes, que a cada noite morro um pouco, com docilidade. E quando desperto, finjo que venci algo, quando apenas retornei por acaso. Acordar é sempre um espanto, o retorno de um desaparecido que ignora como voltou. A morte e o sono são variações de um mesmo fenômeno: a interrupção do ser. O primeiro é reversível, o segundo não.

Creio que o sono me ensina a morrer sem desespero. É um aprendizado lento, um esvaziamento progressivo, uma morte em prestações. Enquanto durmo, o universo segue o seu curso, indiferente à minha insignificância. Com a morte será igual: os rios continuarão correndo, o vento soprará, e o meu nome se apagará.

Dormir é um ato de desapego de cada um de nós. O corpo obedece ao natural, o espírito se rende e nos esquecemos no tempo. Compreendo isso, durmo em paz. Porque já entendi o segredo: morrer não é castigo, é apenas o último sono.

O sono é o ensaio da morte. E a vida, esse breve intervalo entre dois silêncios, é apenas a memória de que o absurdo, muito menos o humano, tem paciência infinita.


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