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Álvaro de Campos :: Saudação a Walt Whitman | Por Antônio Abujamra

 


Álvaro de Campos :: Saudação a Walt Whitman | Por Antônio Abujamra

Álvaro de Campos, mais do que qualquer heterônimo, deixou um rastro de textos em combustão, notas soltas, torrentes inconclusas. Ele escrevia como quem explode. Faz sentido que “o poema” só exista porque alguém recolheu os estilhaços. A edição de 1944, feita por João Gaspar Simões e Luís de Montalvor, foi a primeira tentativa de dar forma a esse caos luminoso, e acabou servindo de base para todas as leituras posteriores. Por isso a versão de Abujamra cola tão bem: ela nasce dessa tradição editorial que montou Campos como um corpo inteiro, mesmo sendo um corpo feito de fragmentos.

Teresa Rita Lopes, depois, trouxe rigor filológico e devolveu a ideia essencial: o texto não é um poema único, mas um conjunto de pedaços pulsantes que foram ganhando vida na leitura alheia. Ao incluí-los nas edições críticas, ela mostra que o verdadeiro Campos é este campo fragmentário, uma máquina emocional sem fechamento.

A força do poema nasce dessa contradição íntima: Campos lança o convite à própria destruição como quem examina uma ferida aberta com frieza analítica. Não há sentimentalismo, não há consolo, há antes um desafio: se o impulso é tão forte, por que ele mesmo esbarra em sua própria impossibilidade? É o jogo duplo do eu dividido, o sujeito que quer e não quer, que sente e se observa sentir. Pessoa sempre fez disso uma arte, mas aqui o tom é de abismo puro, quase clínico, quase blasfemo. A pergunta inicial funciona como porta que se abre para um corredor de paradoxos.

O poema também opera como investigação filosófica sobre a vontade. Há algo de Schopenhauer, algo de Cioran avant la lettre. Campos percebe que a sombra do suicídio é muitas vezes mais poderosa que o ato em si; é presença constante, fantasma íntimo, motor de reflexão. Quando ele diz que também se mataria “se ousasse”, está assumindo a covardia universal que nos amarra à vida. A vida não vence por ser desejada; vence por ser inevitável. Esse paradoxo, exposto cru, sem floreio, produz uma verdade desconfortável. A lucidez aqui não ilumina, queima.

Depois de toda a teatralização racional da morte, o poema não resolve nada; ele se rende ao fato fundamental: a dor não cede. O coração é uma ferida reincidente, e a pergunta derradeira é lancinante porque abandona qualquer pose intelectual. É a voz humana pedindo trégua. Por isso o poema funciona tão bem como texto para ser dito, lido, performado. Campos escreveu um pedaço de alma em combustão. A tradição crítica tenta ordenar os fragmentos, mas o poema só existe mesmo como aquilo que é: matéria despedaçada, vida sem forma, o eu em suspensão entre querer morrer e querer continuar pensando sobre morrer.

É como se o poema se dissolvesse no seu próprio grito. Nenhum outro verso fecha melhor a natureza desse heterônimo que sangra na própria lucidez. É um final que não encerra; ecoa.

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