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Charles Bukowski: Resistência e Amor

Um Dia em Minha Vida | Contos Selecionados



Acordo às seis da manhã, como sempre, porque meu corpo, esse traidor eficiente, se recusa a desperdiçar mais tempo no abismo do sono. O quarto está escuro, mas não o suficiente para bloquear o zumbido distante do ar-condicionado do vizinho, que liga pontualmente à meia-noite e ronca como um motor de caminhão até o amanhecer. Eu sei que é um homem que passa os dias consertando eletrodomésticos na garagem e as noites bebendo cerveja barata enquanto assiste a reprises de novelas antigas. Ele dorme como um justo, sem sonhos que o assaltem com perguntas sobre o sentido de tudo isso. Eu, por outro lado, acordo com o peso de uma certeza que não pedi: o universo não tem roteiro, e eu sou o único na plateia que percebeu isso.


Levanto devagar, os músculos de meia-idade protestando contra a gravidade que, ironicamente, é a única lei imutável que me resta. No banheiro, encaro o espelho e vejo um homem de quarenta e sete anos com olheiras que parecem sulcos de um tratado de filosofia mal digerido. Escovo os dentes pensando em Camus e sua pedra eterna, mas o que me vem é só o gosto amargo do creme dental, um lembrete de que até a higiene é uma ilusão de controle.


Desço para a cozinha, onde o cheiro de café instantâneo me recebe como um velho inimigo. Minha mulher já está lá, mexendo uma panela de ovos mexidos com a eficiência de quem nunca questionou por que ovos mexidos existem. Ela tem trinta e nove anos, mas parece mais jovem porque sua mente é um jardim bem podado, sem ervas daninhas de dúvida. "Bom dia, amor", diz ela, com um sorriso que ilumina o linóleo rachado do piso. Eu respondo com um murmúrio, porque qualquer efusão matinal soaria falsa, como um ator recitando linhas que não escreveu.


Nossos filhos entram em seguida: um menino de dezesseis, com os fones de ouvido pendurados no pescoço como uma coleira moderna, e uma menina, de catorze, rolando o feed do celular enquanto mastiga. Ele reclama do dever de casa de matemática: "Essa equação é uma burrice, pai, pra que isso na vida real?" E e eu sinto o aperto familiar no peito. Eu poderia explicar, em dez minutos, como as equações diferenciais regem o fluxo do tráfego que ele tanto odeia, ou o colapso das estrelas que renderam as supernovas que forjaram os átomos do seu corpo. Mas o que digo é: "Estude, vai te ajudar no vestibular". Porque eu sei que não vai. Nada ajuda de verdade. Ela, por sua vez, mostra uma foto de um influenciador dançando em uma praia remota. "Olha isso, pai, ele viajou pra Bali de graça por causa de um sorteio. Incrível, né?" Incrível. Eu assinto, mastigando meu ovo que parece serragem, e penso na vastidão do oceano Pacífico, na erosão das placas tectônicas que engolirão essa ilha em milênios, e no fato de que o "incrível" dela é o mesmo que sustenta o império de likes vazios que consome sua atenção. 


Eles comem, riem de um meme que não entendo, e saem para a escola sem um beijo de despedida. Ela me beija na testa. "Bom trabalho." Eu sorrio, porque é o que se faz, mas por dentro, invejo o silêncio da cabeça dela, o conforto de não ver os mecanismos da mentira por trás de cada "bom dia".


O trânsito para o escritório é um ritual de humilhação coletiva. Dirijo meu carro de dez anos, um sedã cinza que comprei usado porque novo seria um luxo desnecessário para um potencial desperdiçado como o meu. A rodovia está engarrafada, como sempre às sete e meia, um cordão umbilical de metal e fumaça que liga subúrbios medíocres a centros empresariais ainda mais medíocres. Ao meu lado, um SUV reluzente com adesivo de "Família Abençoada" bufa fumaça no meu retrovisor. 


Dentro, uma mãe gesticula animadamente para as crianças no banco de trás, provavelmente contando histórias de unicórnios ou de como o papai é o melhor vendedor de seguros do mundo. Eu aperto o volante, sentindo a raiva subir como bile. Por que eles não veem? O trânsito não é só lentidão; é a metáfora perfeita da existência humana: bilhões de almas presas em filas infinitas, consumindo combustível fóssil enquanto o planeta tosse e o tempo escorre pelos escapamentos. 


Meu rádio toca uma notícia sobre o novo plano de mobilidade urbana, prometendo ciclovias que nunca saem do papel. Eu desligo, porque as promessas políticas são só ecos de mentiras antigas, e começo a recitar mentalmente trechos de "O Ser e o Nada" de Sartre, mas até isso soa vazio agora. Um, buzina atrás de mim: um homem de terno amarrotado, provavelmente meu cunhado em espírito, impaciente porque perdeu dois minutos no semáforo. Eu acelero devagar, pensando que, se eu fosse menos lúcido, talvez berrasse de volta, aliviando a pressão com uma explosão primitiva. 

Mas eu vejo o todo: a fúria dele é só um sintoma de uma sociedade que finge progresso enquanto patina no asfalto rachado.


Chego ao escritório às oito e quinze, quinze minutos atrasado por causa do caos previsível. Meu emprego é na contabilidade de uma distribuidora de materiais de construção: planilhas, relatórios fiscais, auditorias que detectam fraudes mínimas em um sistema podre de corrupção sistêmica. Eu sou o chefe do departamento, um título que soa nobre mas significa supervisionar uma equipe de cinco pessoas que mal sabem diferenciar débito de crédito sem um tutorial no YouTube. 


Meu chefe, me recebe com um tapa nas costas que ecoa como um tapa na cara da minha erudição. "Bom dia, doutor! Viu o jogo ontem? Que virada, hein?" Ele é um homem de cinquenta e cinco anos, com barriga de quem come fast-food no almoço e discute futebol como se fosse teologia. Eu forcei um sorriso ontem à noite para assistir ao jogo com ele no bar da firma, fingindo empolgação com os gols enquanto meu cérebro calculava as probabilidades estatísticas de um time mediano vencer por pura sorte, o que, claro, é a essência da vida. "Virada épica", respondo, sentando à minha mesa. O dia se desenrola em uma sucessão de e-mails triviais: aprovar reembolsos para ferramentas que nunca serão usadas, reconciliar contas que mascaram ineficiências crônicas, e uma reunião às dez onde discutimos metas trimestrais. "Precisamos otimizar a cadeia de suprimentos", diz a gerente de vendas, uma mulher de trinta anos com unhas postiças e um MBA de uma faculdade online. Otimizar. Eu poderia discorrer por horas sobre teoria dos jogos e logística quântica, mas o que digo é: "Concordo, vamos ajustar os prazos". 


Dentro de mim, a paralisia toma conta: por que me importo? Esse trabalho é o túmulo do meu potencial, o lugar onde eu, que devorava Kant aos vinte anos, otimizo planilhas de Excel como um escravo moderno. Uma colega, passa com um café na mão e pergunta sobre meu fim de semana. "Fui ao cinema, vi um documentário sobre economia comportamental." Ela ri: "Nossa, que chato! Eu vi aquele blockbuster de super-heróis." Chato. Eu invejo a leveza dela, o prazer simples em explosões CGI sem questionar se os heróis são só arquétipos freudianos reciclados.


O almoço é o ápice da mediocridade diária. Hoje, é na cantina da firma, mas o meu colega e tio da minha mulher que insiste em convidar o cunhado dele, que trabalha na manutenção e acha que "cultura" é o nome de uma marca de fertilizante. Sentamos em uma mesa plástica, com pratos de arroz e feijão que cheiram a óleo requentado. O cunhado começa: "E aí, rapaz, casou com a sobrinha do dele, hein? Família é tudo." Ele é um homem de sessenta, com mãos calejadas de consertar canos e uma risada que abafa qualquer profundidade. 


Minha sogra, que mora a dois quarteirões e aparece nos almoços sem convite, assente vigorosamente. "É verdade, meu genro. Você precisa de mais netos, senão a vida perde a graça." Graça. Eu mastigo meu bife mal passado, pensando na biologia evolutiva por trás da procriação: um truque químico para perpetuar genes em um cosmos indiferente – e respondo: "Estamos pensando nisso." Mas não estamos. Ela quer, sim, mas eu vejo o ciclo: mais crianças presas no mesmo carrossel de ilusões. O cunhado do tio da minha mulher conta uma piada sobre um político corrupto que "pelo menos constrói estradas", e todos riem, inclusive o tiozão dela, que engasga com o refrigerante. Eu forço uma gargalhada, sentindo o estômago revirar. Não é a comida; é o vazio. Eles comem, conversam sobre o preço da carne e o novo shopping que vai abrir, alheios ao fato de que o capitalismo que financia esse shopping devora comunidades inteiras no Terceiro Mundo. Eu termino primeiro, peço licença e vou para o banheiro lavar o rosto, encarando o reflexo novamente. "Por que você ri?", pergunto em silêncio. Porque é mais fácil do que gritar.

A tarde no trabalho é uma névoa de tarefas mecânicas. Respondo a um relatório de discrepâncias fiscais, corrigindo erros que um estagiário cometeu por preguiça cognitiva, e participo de uma call com fornecedores que barganham como se o mundo acabasse amanhã. "Precisamos de desconto nos cimentos", diz o representante, um sotaque arrastado de interior. 


Eu negocio, calculando margens que não importam no grande esquema, enquanto minha mente divaga para a entropia termodinâmica, o inevitável colapso de toda ordem. Às quatro, uma mensagem dela, minha mulher: "A mamãe - a sogra do almoço - vem jantar hoje. Fiz lasanha." Ótimo. Mais horas de conversa fiada. Saio às cinco e meia, o trânsito agora um inferno invertido, com o sol poente tingindo os carros de laranja como um quadro impressionista que ninguém aprecia. 


No caminho, passo pela casa dos vizinhos, estes tem nome: os Silvas, que regam o jardim com uma mangueira velha enquanto o pai grita instruções para o filho consertar uma bicicleta. Eles acenam, e eu aceno de volta, mas por dentro, catalogizo: ele é um vendedor de carros usados, ela uma dona de casa que lê romances água com açúcar. Felicidade doméstica, blindada pela ignorância de que o jardim secará com as secas futuras.


Chego em casa às seis e quarenta, o cheiro de lasanha preenchendo o ar como uma promessa falsa de conforto. Meu filho joga videogame na sala, xingando pixels que representam guerras fictícias, enquanto minha filha filma um vídeo para o TikTok, dançando uma coreografia que imita celebridades que ela nunca encontrará. "Oi, pai!", diz ela, sem pausar. 


Minha mulher me abraça na cozinha, e a sogra, sentada à mesa com um copo de suco de caixinha, comenta: "Você tá magro, comendo o quê no trabalho?" Eu respondo que como bem, mas ela insiste em servir uma porção extra, tagarelando sobre o novo padre da paróquia que "faz missas tão animadas". 


O jantar é um purgatório social: meu filho reclama da escola, minha filha mostra fotos de amigos em festas que eu sei que terminam em bebedeiras vazias, e a sogra elogia a lasanha como se fosse uma obra de arte renascentista. Eu como em silêncio, intervindo com "hum" e "é mesmo", enquanto penso na engenharia social por trás de refeições familiares: um ritual patético para mascarar a solidão inerente à condição humana. Depois, lavo a louça sozinho, porque minha mulher merece uma pausa, e no escuro da cozinha, permito-me um momento de honestidade: eu invejo eles. A paz de não questionar o molho de tomate ou o futuro dos filhos.


A noite se arrasta. Tento ler "A Náusea" de Sartre na poltrona da sala, mas meu filho liga a TV em um reality show de talentos, onde competidores cantam covers ruins de músicas pop. "Vem ver, pai, essa menina é hilária!" Eu vou, porque recusar seria ser o chato de sempre, e assisto por vinte minutos, analisando a psicologia da validação televisiva enquanto eles riem das notas desafinadas. Minha mulher se junta a nós, aninhando-se no sofá, e por um segundo, sinto uma pontada de conexão, mas logo vem o pensamento: isso é só oxitocina, um hormônio traidor. Às dez, a sogra vai embora, beijando todos com fervor, e a casa cai em um silêncio pontuado pelo tic-tac do relógio na parede. 


Coloco as crianças na cama, ouvindo resmungos sobre lição de casa não feita, e subo para o descanso merecido. Minha mulher quer transar e, então, fazemos amor de forma mecânica, um alívio físico sem a ilusão romântica que ela ainda carrega, e ela adormece em minutos, uma ninfomaníaca, respirando ritmado como uma máquina bem lubrificada.


Eu fico acordado até depois da meia-noite, deitado na cama com o teto como tela para projeções mentais. O dia inteiro desfila: o trânsito como alegoria da futilidade, o almoço como sinfonia de banalidades, o trabalho como prisão de potencial não realizado. Tento meditar, focar na respiração, mas o cérebro não cala: ele lista falácias, calcula probabilidades de infelicidade futura, inveja o sono profundo dela ao meu lado. Por que eu vejo tudo? A hipocrisia no aceno do vizinho, a mediocridade do tio postiço no almoço, o vazio no abraço da sogra que  cheira a manteiga passada ou banha de porco, ainda não sei.


Este momento é uma bênção que virou maldição, um pedestal solitário de onde eu observo o mundo girar repetidamente sem mim. Eventualmente, o cansaço vence, e eu durmo, sonhando com portais para dimensões onde a ignorância é um luxo acessível. Amanhã será igual, e é isso que dói mais, um dia em minha vida, um dia igual a todos os dias da minha vida.


Saulo Carvalho

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