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Tabacaria. Poema de Álvaro de Campos. Heterônimo de Fernando Pessoa [Um dos maiores poetas de todos os tempos!]

 


Tabacaria, poema de Álvaro de Campos

Heterônimo de Fernando Pessoa [Um dos maiores poetas de todos os tempos!]

Interpretação do saudoso Antônio Abujamra.


"TABACARIA
Álvaro de Campos

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
Uma fileira de carruagens, numa fila de carruagens, rumo a outro mundo.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?" 


A Tabacaria é o grande espelho estilhaçado da modernidade, onde o sujeito se vê múltiplo, cansado, lúcido demais para acreditar em si mesmo e sensível demais para desistir de olhar o mundo. É um poema que encarna o excesso de consciência, essa doença doce e fatal de quem pensa demais e pertence de menos. Campos transforma o cotidiano banal em palco metafísico. A simples tabacaria da frente torna-se farol, âncora, ironia, destino e fracasso. O eu poético fala com a crueza de quem sabe que a vida é só uma soma instável de intenções, hesitações e sonhos que não se realizam. Nada é romantizado. Nada é confortado. Apenas expõe, com a precisão cirúrgica do tédio e da lucidez, o vazio que vibra sob todas as coisas.

No centro do poema está a tensão entre ser e não ser, entre existir e observar-se existir. O narrador se desmonta em camadas: o homem comum, o poeta grandioso, o fingidor consciente dos limites da própria imaginação. Ele sabe que o mundo não precisa dele, que a tabacaria continuará aberta, indiferente, esteja ele vivo ou morto. Essa consciência brutal, porém, não o destrói. Ela o ilumina. O poema se torna a confissão de uma alma que sabe que fracassou no ideal de grandeza, mas que reconhece nesse fracasso um tipo raro de verdade. É a vitória amarga do pensamento sobre a ilusão, e é dessa vitória que nasce a poesia.

No final, resta essa melancolia elétrica, esse desamparo brilhante que só Campos sabia fazer. A Tabacaria não pede esperança. Pede coragem. Pede lucidez. Pede a força de permanecer inteiro diante do absurdo, mesmo quando tudo o que se tem é um corpo cansado encostado à janela e a certeza de que o mundo seguirá girando sem o menor drama. É justamente nesse gesto calmo, resignado e ainda assim intenso, que o poema encontra sua grandeza. É a celebração paradoxal de um homem que sabe que nada importa, mas insiste em olhar, sentir, pensar e escrever como se o instante fosse tudo.

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