Pesquisar este blog
Capital Cultural | Consultoria | Mentoria | Alta Cultura | Criatividade | Estratégia | Mundo Corporativo | Consumo Alto Padrão | Gestão de Capital Simbólico | Gestão de Crise de Imagem | Ghost-Writer | Palestrante
HUB Destaques
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
"Se te queres matar…" Poema de Álvaro de Campos [Fragmento Destacado]
[...]
Fragmento Destacado:
"Se te queres matar…
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada".
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esquecem-te.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...”
Análise do Poema:
O poema de Álvaro de Campos é um golpe direto na ilusão da importância humana. Ele desmonta a aura romântica do sofrimento e da existência, encarando de frente a ideia do suicídio não como tragédia metafísica, mas como gesto que revela a insignificância estrutural do indivíduo no mundo. A voz poemática fala sem véu, com uma frieza que lateja, mostrando que os dramas humanos não resistem à lógica impessoal da vida. O eu lírico ironiza a moralidade, ridiculariza escrúpulos e devolve ao leitor a sensação incômoda de que a vida segue, indiferente, mesmo quando alguém desaparece.
A força do poema nasce desse contraste entre lucidez extrema e brutalidade quase clínica. Álvaro de Campos desmancha a fantasia de que somos necessários. Expõe com precisão cirúrgica o teatro social que envolve a morte: a comoção automática, o ritual vazio, o esquecimento que chega rápido. Nesse processo, revela um diagnóstico impiedoso da condição humana. Para o heterônimo, a vaidade é nossa doença primordial. Pensamos ser o centro do universo, mas somos apenas um ponto fugidio no fluxo químico da matéria. A morte, então, não é o abismo moral que tememos, e sim um retorno à mecânica que nos gerou.
No fim, o poema funciona como um espelho inclemente. Obriga o leitor a olhar para a própria existência sem a maquiagem da significação. A provocação não é um convite à morte, mas ao desmascaramento. Campos joga luz sobre o medo, a grandiosidade imaginária e o apego narcísico ao eu. Ao desmontar essas ilusões, ele retira do suicídio o glamour trágico e da vida a pretensa nobreza metafísica. O que sobra é um gesto radical de lucidez. Um chamado para perceber que viver ou morrer são movimentos de uma mesma engrenagem, e que somente ao aceitar essa dimensão impessoal conseguimos compreender a profundidade inquietante do poema.
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Mais Lidas
Capital Cultural: a Moeda Silenciosa do Prestígio
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos

Comentários