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Quem foi Euclides da Cunha? [Série Grandes Brasileiros] Do Editor

          
A vida de Euclides da Cunha parece escrita como ficção. Filho de um país que ainda se inventava, cresceu entre deslocamentos, vulnerabilidade familiar e a sensação precoce de que tudo no Brasil é sempre um pouco improvisado demais. Perdeu a mãe cedo, viu o pai enfrentar dificuldades, passou por mudanças constantes entre cidades, e esse nomadismo involuntário moldou nele um olhar inquieto e atento ao grotesco e ao grandioso que convivem no cotidiano brasileiro. Ainda jovem, encontrou na Escola Militar um abrigo provisório para sua inteligência obsessiva, mas também o palco de seu primeiro confronto com a autoridade. A recusa em silenciar diante de um comandante exagerado virou símbolo do que seria sua vida inteira: um homem que não sabia dobrar o espinhaço, mesmo quando isso lhe custava caro. Era engenheiro, mas também era fogo.

Comissionado para cobrir a campanha de Canudos, acreditava estar indo registrar a vitória da civilização contra um motim fanático. O que encontrou foi o contrário. O sertão expôs sua alma ao pó e queimou suas ilusões uma a uma. O Brasil urbano e republicano lhe parecia promissor; o Brasil profundo lhe mostrou que a República nascera excludente, apressada, cega. As longas estradas esfareladas, a pobreza fossilizada, a religiosidade como último abrigo de um povo desamparado; tudo isso desmontou a narrativa oficial. Ele percebeu que o Estado, que deveria servir de amparo, escolhera a violência como linguagem. E percebeu que a imprensa, tão convicta, estava apenas repetindo o que queria acreditar. A verdade era outra, mais densa, mais humana, mais incômoda. Canudos não era ameaça. Era uma pergunta. E ele teve coragem de escutá-la.

Esse choque moral moldou Os Sertões, obra que mistura ciência e poesia, geologia e dor, análise social e indignação ética. É livro de fronteira, desses que não cabem nas prateleiras fáceis. E talvez por isso mesmo Euclides seja tão pouco homenageado no Brasil. Um gigante que não recebeu do país nem metade da reverência que merece. Fala-se nele menos do que se deveria, estuda-se menos do que seria justo, celebra-se menos do que convém. Um grande brasileiro, desses raros, desses que vêm para enxergar o que todos fingem não ver.

A Amazônia aprofundou essa vocação de testemunha desconfortável. Enviado para acompanhar questões de fronteira, ele encontrou seringais que funcionavam como máquinas de moer gente. Trabalhadores endividados eternamente, indígenas dizimados por frentes econômicas que se escondiam atrás da palavra progresso, violência naturalizada como método. Ele se espantou com a brutalidade e registrou tudo, como quem sabe que está escrevendo contra o esquecimento. Percebeu a tensão entre Brasil e Peru, viu a precariedade das missões diplomáticas e compreendeu que a floresta escondia uma batalha política silenciosa. A Amazônia era ao mesmo tempo riqueza estratégica e cemitério. Essa dicotomia o perseguiu.

Sua própria vida pessoal era uma tormenta. Carregava fragilidades emocionais, vivia crises internas que os amigos percebiam no olhar, tinha explosões temperamentais, mas também uma delicadeza que surpreendia quem o conhecia de perto. Ele se debatia entre o engenheiro disciplinado e o poeta tempestuoso que queria escrever tudo de um fôlego só. E a tragédia final, o episódio que o matou, parece quase um símbolo cruel da maneira convulsionada com que vivia: um homem que amava a justiça, mas morria afogado num drama doméstico que talvez revelasse a violência silenciosa que o acompanhou por dentro a vida inteira.

Por tudo isso, Euclides atravessa o nosso tempo com uma atualidade perturbadora. O país que ele tentou compreender continua marcado pelas mesmas fraturas: regiões abandonadas, populações tratadas como estorvo, elites cegas ao sofrimento real, progresso que marcha sem perguntar nada a ninguém. Ele viu o Brasil por dentro, sem verniz, sem slogans. E o que deixou escrito é uma convocação. Não para repetir suas conclusões, mas para ter a mesma coragem de olhar o país com brutal honestidade.

Pouco homenageado, pouco lido, pouco compreendido, embora gigante. Euclides da Cunha continua sendo um desses brasileiros que nos obrigam a encarar o espelho. E talvez por isso mesmo seja tão necessário. Ele tentou explicar o Brasil e, ao fazê-lo, explicou também a nós. E o que se vê ali ainda é de cortar o fôlego.

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