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Charles Bukowski: Resistência e Amor

O Triângulo da Desilusão: Lefort, Lyotard e Castoriadis


O século XX foi um cemitério de certezas. Duas guerras mundiais, os horrores do Holocausto e a revelação progressiva do Gulag Soviético despedaçaram a fé europeia na razão, no progresso linear e nas grandes narrativas de emancipação. 


Deste solo devastado, emergiu uma geração de pensadores que se dedicou não a reconstruir os ídolos quebrados, mas a diagnosticar, com rigor e melancolia, a natureza do colapso. Entre eles, Claude Lefort, Jean François Lyotard e Cornelius 


Castoriadis formam um triângulo intelectual decisivo. Unidos pela experiência fundadora do marxismo dissidente e separados pelos caminhos específicos de suas indagações, estes três filósofos traçaram, a seu modo, a anatomia do mundo pós totalitário e pós metafísico.


A origem comum é significativa. Os três estiveram, em diferentes momentos, envolvidos com o grupo Socialisme ou Barbarie, uma cisão de esquerda antistalinista que buscava uma compreensão radicalmente nova da burocracia soviética e das sociedades capitalistas. 


Foi no crisol deste grupo que eles forjaram a sua desilusão fundamental: a de que o comunismo real não era uma degeneração do ideal marxista, mas a sua realização monstruosa, uma nova forma de exploração de classe sob a bandeira da libertação. Esta descoberta não os levou ao abraço do capitalismo liberal, mas a uma investigação profunda sobre a natureza do poder, da sociedade e do saber.


Claude Lefort dedicou-se a compreender a forma simbólica das sociedades. A sua grande contribuição foi a conceptualização da democracia e do totalitarismo como regimes antagônicos de representação do poder. 


Na democracia, argumenta Lefort, o lugar do poder é vazio. Nenhum corpo, nenhum indivíduo, nenhum partido pode encarnar plenamente a sociedade. A autoridade é um lugar temporário, contestado, cuja legitimidade é sempre provisória e depende da encenação pública do conflito e da divisão. A democracia é, assim, a instituição da incerteza.


O totalitarismo, por oposição, é a tentativa desesperada e violenta de preencher esse vazio. O líder, como Stalin ou Hitler, afirma ser a encarnação do Povo, da Nação ou do Proletariado.


Ele funde o Estado com a sociedade, criando a ficção de um Corpo Único, purificado de divisões, conflitos e negatividade. A sociedade torna se uma só carne, um organismo onde a diferença é um tumor a ser extirpado. A genialidade de Lefort está em mostrar que o totalitarismo não é simplesmente uma ditadura, mas uma lógica simbólica que pretende eliminar o político, que é, por natureza, o reino da divisão e da disputa.


Se Lefort operou no registo da filosofia política, Jean François Lyotard levou a crítica para o domínio da epistemologia e da linguagem. Em A Condição Pós Moderna, ele diagnostica o fim das grandes narrativas ou metanarrativas. Estas são os grandes sistemas de pensamento, como o Marxismo, a Ilustração ou o Idealismo Hegeliano, que prometiam uma libertação final da humanidade, justificando todo o saber e toda a ação política em nome deste fim glorioso. 


Lyotard declara a nossa incredulidade face a estas histórias totais. Auschwitz é a prova de que a narrativa do progresso humano é uma farsa sangrenta. O Gulag é a prova de que a narrativa da emancipação proletária pode gerar a sua própria e terrível tirania.


O conceito mais radical de Lyotard é o diferendo. Um diferendo ocorre quando um conflito entre duas partes não pode ser resolvido porque falta a linguagem ou o tribunal adequado para fazê-lo. A parte lesada é silenciada, pois a sua dor não pode ser traduzida para o idioma do poder que a oprime. 


O sobrevivente de um campo de concentração não pode provar o seu sofrimento único num tribunal que opera com provas materiais e artigos de lei; há um abismo entre a sua experiência e a linguagem disponível. O dever da filosofia, para Lyotard, é testemunhar o diferendo, dar voz ao inexprimível, sem cair na arrogância de acreditar que se pode representar plenamente o irrepresentável.


É aqui que a figura de Cornelius Castoriadis, cofundador do Socialisme ou Barbarie com Lefort, completa o triângulo. Castoriadis partilha com Lefort a análise da burocracia e com Lyotard a desconfiança em relação aos sistemas fechados. No entanto, o seu conceito central, a imaginação radical e o socialmente histórico, oferece uma contrapartida criativa à crítica. 


Para Castoriadis, a sociedade não é apenas um sistema de poder, mas um universo de significados auto instituído. A sociedade cria a si própria através de um ato de imaginação coletiva, definindo o que é real, válido e desejável. O socialmente histórico é esta camada de significados partilhados que, no entanto, esconde a sua própria origem contingente.


O totalitarismo, nesta ótica, é o medo de uma sociedade confrontada com a sua própria falta de fundamento. É o desejo de congelar a instituição social, de negar a sua natureza criada e histórica, e de a apresentar como natural, necessária e eterna. A tarefa da política autêntica, para Castoriadis, é a autonomia: a capacidade de uma sociedade refletir conscientemente sobre as suas próprias leis e instituições e modificá-las, aceitando plenamente que não há garantias transcendentais para as suas escolhas.


Por fim, o pensamento de Lefort, Lyotard e Castoriadis forma uma constelação única para entender o nosso tempo. Lefort mostra-nos a forma vazia do poder democrático, que deve permanecer vazia para evitar a catástrofe da incorporação totalitária. 


Lyotard alerta-nos para os perigos das narrativas totais e para a impossibilidade de uma justiça que não esteja atenta ao silenciamento do diferendo. Castoriadis, por fim, recorda-nos que, embora não haja fundamento último, a sociedade é uma criação contínua, e que a aceitação do vazio lelo vitiano pode ser o ponto de partida para uma autonomia radical.


Juntos, eles mapearam o território da nossa modernidade tardia: um mundo sem bússolas metafísicas, onde a única esperança reside não na busca de uma nova certeza, mas na coragem de habitar a incerteza, de ouvir as vozes silenciadas e de assumir, coletiva e lucidamente, o fardo e a maravilha de nos criarmos a nós mesmos, sem garantias e sem fim.

Saulo Carvalho

[Arquivos de Filosofia]

 

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