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A Luz de Guerra Junqueiro
Guerra Junqueiro foi uma das vozes mais ardentes do lirismo português oitocentista. Filho de uma época de transição, onde a fé começava a ser substituída pela razão e a moral pelo ceticismo, sua poesia oscilou entre o sagrado e o social, entre o Cristo e o povo. Nascido em Freixo de Espada à Cinta, viveu o peso da religião e o fervor do idealismo republicano. Junqueiro não foi um poeta sereno: sua palavra era lâmina. Denunciou a hipocrisia dos altares, a miséria dos humildes e a indiferença das elites com a força de quem vê na poesia um ato moral. Seu verbo, mesmo quando compassivo, é uma forma de justiça.
Em Caridade, o poeta ergue um cenário de ocaso. O crepúsculo desce como uma cortina sobre o mundo, e com ele a paz aparente da natureza. “Caía a noite em paz. Crepúsculo. Horas quedas.” O ritmo lento dos versos faz ecoar o recolhimento universal: aves voltam aos ninhos, flores se cerram, a terra respira em silêncio. Tudo parece repousar num equilíbrio divino. Mas a serenidade logo se converte em pressentimento. As árvores assumem o gesto do martírio, a lua torna-se “poça de sangue, horrendamente informe”. A natureza, que antes consolava, passa a refletir a dor humana. Junqueiro faz do crepúsculo uma revelação moral: a beleza que se apaga no horizonte é a mesma que falta nos lares dos pobres.
A noite que cai é a metáfora da sociedade que se escurece. O poeta alterna entre o olhar místico e o indignado, compondo um quadro em que o divino e o social se confundem. A miséria surge como crucificação moderna: o operário faminto, a criança sem abrigo, a mulher que chora em silêncio. A “Caridade” do título é súplica e salvação. Surge ao fim, personificada, portando lírios e uma luz redentora. É a figura feminina que devolve ao poema a esperança, não a esperança ingênua, mas a fé lúcida de quem sabe que só o amor pode reabrir o ciclo da luz. A paisagem deixa de ser cenário e torna-se espelho moral. O crepúsculo, nesse jogo de claro e escuro, é o ponto em que o homem se reconhece na própria sombra.
A arte de Junqueiro reside justamente nesse movimento dialético: entre o sublime e o terreno, entre o sagrado e o humano. Sua poesia é feita de contrastes, e é neles que brilha. A compaixão é fogo e não perfume; a fé é ferida antes de ser cura. Ele escreve com o ímpeto de quem acredita que a beleza, quando verdadeira, é também um gesto de justiça.
Em poetas posteriores, o crepúsculo seguirá sendo um território de passagem, mas com tons diversos. Eugénio de Andrade, no seu lirismo puro e despojado, dirá: “O que eu amo é a paisagem sem nome e sem fim.” Aqui, o ocaso já não é denúncia, mas recolhimento. A natureza volta a ser refúgio e não espelho social. É o instante em que o homem se dissolve na luz que desaparece, num quase silêncio interior. Já Teixeira de Pascoaes, visionário da alma lusíada, vê no mesmo crepúsculo o limiar do invisível: “Sou um crepúsculo de alma, um poente humano.” O seu escurecer é metafísico, feito de nostalgia cósmica, de alma que se funde com o mistério.
Em Junqueiro, o crepúsculo é uma ferida; em Eugénio, é sossego; em Pascoaes, é espírito. Três modos de olhar a mesma fronteira entre o dia e a noite, três tons de uma mesma luz que declina. Caridade permanece como o ponto em que a poesia portuguesa descobre que toda beleza verdadeira traz, em si, a dor do mundo. E que a verdadeira caridade é essa chama que resiste, mesmo quando o sol já se pôs.
Saulo Carvalho
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