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Breves Anotações sobre Frans Kafka


"A criação não precisa ser perfeita, precisa ser honesta. 
Não precisa ser genial, precisa ser genuína". 
Frans Kafka.

Kafka sempre me parece alguém que descobriu cedo demais a fratura entre o que somos e o que sentimos que deveríamos ser. Ele se via dividido em camadas que jamais coincidiam. Escrevia de um jeito, falava de outro, pensava de outro ainda. E, no fundo dessa sequência, encontrava apenas trevas. Essa percepção radical da própria inadequação não era sintoma de falta de talento. Era o efeito de um talento tão agudo que se voltava contra o próprio autor.

Ao observar sua vida, vejo um homem condenado a um descompasso constante. Filho de um pai imponente, criado em um ambiente que não acolhia sua sensibilidade, Kafka cresceu sob expectativas que jamais conseguiria cumprir. E justamente por isso escolheu a literatura, que lhe oferecia a única forma de respirar. A escrita foi sua defesa e seu tormento. Usou-a como refúgio e como lâmina. Era sua chance de existir e, ao mesmo tempo, sua maior fonte de culpa.

A ironia cruel da vida kafkiana é que quanto mais escrevia, mais se sentia inábil para escrever. Ele percebia com clareza a distância entre o que imaginava e o que chegava ao papel. Sua lucidez não o salvava. O destruía. Enquanto escritores medíocres sobrevivem em paz dentro da própria sombra, Kafka via demais e não suportava o que via. O que para muitos seria dádiva, para ele se tornou prisão. Chamou-se de gaiola em busca de um pássaro e, com essa imagem, selou o diagnóstico da própria alma.

Nada disso o impediu de criar. Ao contrário, criou através da dor. Transformou angústia em linguagem e pesadelo em forma. A cada texto, tentava alcançar uma perfeição que sabia inalcançável. Por isso desejou que tudo fosse queimado. Não por desprezo à literatura, mas por acreditar que sua obra não merecia existir. O mais trágico é que morreu sem saber que havia escrito o mapa da nossa própria condição moderna, essa mistura de culpa, confusão e lucidez que todos carregamos.

Rever Kafka é descobrir que somos menos distantes dele do que imaginamos. Quem nunca se sentiu inadequado diante do próprio talento? Quem nunca desconfiou da própria voz e escondeu o que criou por medo do julgamento alheio? Kafka apenas levou esse conflito ao extremo. Nós o vivemos de modo mais discreto. Ele apenas disse em voz alta o que a maioria sussurra.

O que me comove em sua trajetória não é o fracasso de autoestima, mas o ensinamento que escapa desse fracasso. Kafka provou que não somos bons juízes do próprio valor. A crítica interna que o perseguiu estava errada. Seus livros provaram isso. E talvez seja esse o ponto em que sua vida toca a nossa. Criamos não porque somos perfeitos, mas porque precisamos existir de algum modo. Criamos porque, no fim, é isso que nos mantém vivos.

Kafka acreditava haver esperança infinita, mas não para nós. Acho o contrário. A esperança infinita é justamente para aqueles que se sentem deslocados, para os que acham que nunca serão suficientes, para quem carrega um talento que pesa mais do que liberta. A esperança é para o imperfeito que ousa criar. Kafka não teve tempo de descobrir isso. Nós temos.

Criar é o que nos salva. Não para sermos imortais, mas para sermos humanos. Assim sigo lendo Kafka, não como quem estuda um autor distante, mas como quem escuta alguém que, preso à própria gaiola, ainda nos oferece a chave.

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